A história é conhecida: uma empresa em que todos trabalham há décadas em computadores, que usa pouco papel, que vende parte de seus produtos em e-commerce e que tem um site bem feito e um ERP organizado decide, de repente, que precisa de uma “transformação digital”.
Como assim? Mas tudo isso já não era digital?
Daí explicam que, hoje, ser digital requer o uso de analytics, IoT, inteligência artificial, blockchain e (insira aqui a tecnologia hype de preferência). De fato, todas essas são tecnologias digitais… mas o fax também é. E não tem ninguém proclamando ser uma empresa digital porque usa fax. Da mesma maneira, não é trocar o Excel por Tableau que vai fazer a empresa passar pela transformação digital – até porque Excel também é digital.
A transformação digital não é simplesmente pegar uma tecnologia digital e aplicá-la em um processo existente. Ela é a mudança, a partir da perspectiva digital, da essência das empresas: suas fronteiras, sua cadeia de valor, seu modelo de negócio e tudo que vai dentro.
O motivo pelo qual ela é tão associada ao hype dessas novas tecnologias tem a ver com a ansiedade das empresas tradicionais em se encaixar na mudança, mesmo sem saber o que na verdade está sendo transformado – na transformação digital, o buraco é mais em cima.
Para entender o que é transformação digital, e de fato agir, é preciso voltar a alguns fundamentos da economia.
Ronald Coase, um dos mais importantes economistas do Século XX, fez, 80 anos atrás, uma pergunta, trivial na superfície, mas fascinante na essência: por que existem empresas?
Na tradição da economia neoclássica, com a qual Coase se deparou, as necessidades seriam atendidas por empresas indiferenciadas (não há diferenças substanciais entre produtos e processos), que iriam transacionar no mercado para construir os bens e serviços. Não faria sentido uma única empresa criar uma hierarquia de transações internas. Para produzir um carro, por exemplo, haveria uma empresa de pneus, uma de motores, uma de bancos, uma de projetos automobilísticos, uma de fabricação, uma outra para vender e ainda outras para dar suporte técnico. Mas, ainda assim, havia a GM e a Ford (que, na época, tinha até a plantação das seringueiras para produzir borracha). Hierarquias gigantescas.
Coase deu uma explicação que traz luz para a discussão atual: só faz sentido existir uma hierarquia quando a firma consegue coordenar uma série de transações e atividades de forma mais eficiente que uma rede de empresas em um mercado. Ou seja, se uma firma não tem uma maneira única de criar valor através da coordenação de transações e atividades, ela está condenada a extinção.
As empresas que existem hoje são resultado do aperfeiçoamento continuo desta maneira de fazer as coisas. Todos os processos, todas as funções, o modelo de negócio e a própria cadeia de valor são a maximização de uma forma de coordenar atividades formada ao longo do Século XX.
Ainda que tenha havido a contínua incorporação de novas tecnologias nas empresas ao longo das últimas décadas, o regime operacional ainda é, em boa medida, o do século passado. Pior. Se tornou anacrônico.
A trajetória de consolidação deste regime conta muito, pois criou lock-ins na maneira de fazer as coisas. As empresas ficaram travadas no modo analógico.
Isto, no mundo digital, acaba limitando a própria capacidade de as firmas enxergarem o que é preciso mudar e de como aplicar as novas tecnologias, que possuem uma essência tão diferente que alteraria os próprios fundamentos da firma.
Nos últimos anos vimos este fenômeno consagrar novos gigantes, que já nascem sob a lógica digital e levam à obsolescência empresas com a antiga estrutura – independente do esforço destas em incorporar novas tecnologia (e não é o Tableau que vai fazer uma gravadora tradicional competir com o Spotify).
Assim como as tecnologias da segunda revolução industrial, e as inovações associadas a elas, moldaram o ambiente econômico que temos hoje, as novas tecnologias vão provocar uma mudança de igual proporção. O ponto em que estamos seria o equivalente a um industrial, em 1890, se perguntado se este negócio de energia elétrica ia mesmo ser importante.
E a essência da transformação não estava em colocar lâmpadas, mas em repensar completamente o modo de produção – e o que produzir, com quem produzir, para quem produzir – com maquinas elétricas.
Nenhuma empresa sobreviveu muito tempo com lâmpadas elétricas iluminando um galpão de produção repleto de maquinas à vapor.
A natureza das tecnologias digitais que estão emergindo, com as arquiteturas abertas e lógica de microserviços, impõe uma reformulação completa da própria natureza das firmas. Sob o desafio colocado por Marc Andreessen no famoso artigo “Software is eating the world”, todas as empresas vão ter que ser, em sua essência, empresas de tecnologia. Este é o azimute da transformação.
Há nestas tecnologias um potencial de aplicação amplo, com impacto transformacional em todos os setores, da mesma maneira que ocorreu com o vapor, a eletricidade e o automóvel nas gerações anteriores.
A transformação, novamente, provocará a reconfigurações das cadeias de valor, com empresas sólidas vendo seu negócio ser engolido. E o interessante é que esta reconfiguração traz uma dinâmica competitiva distinta. As empresas não são ameaçadas por competidores semelhantes, com uma proposta de valor um pouco melhor.
A regra do jogo é a convergência e a desintermediação. As empresas estabelecidas verão seu almoço ser comido à bife… um pedaço do negócio sendo capturado de cada vez, por empresas diferentes, vindas de segmentos distintos ou mesmo até então inexistentes.
O setor de Mídia é o canário na mina, evidenciando hoje o que deve ocorrer nas outras indústrias. Facebook e Google, duas empresas de tecnologia, formam um duopólio no mercado de publicidade, mudando completamente a dinâmica das cadeias de valor e redefinindo fronteiras de negócio.
Outro setor que experimenta uma forte transformação é o de serviços financeiros. Os bancos tradicionais têm visto diversas startups de tecnologia, as Fintechs, capturando serviços que antes estava encapsulados em suas hierarquias, como meios de pagamento, cartões de crédito, investimentos e mesmo empréstimos.
A ansiedade dos que hoje estão sendo atropelados por concorrentes que vieram sabe-se lá de onde tem levado a um entendimento errado também das soluções.
No mundo digital, a ansiedade é a mãe de todos os hypes.
Isto acontece porque o grau de ansiedade é diretamente proporcional ao nível de ignorância em relação aos fundamentos e, especialmente, à resposta do desafio górdia: quando tudo virar digital, para que a empresa vai continuar existindo?
Fazer um roadmap de P&D, abraçar o ecossistema de startups ou criar um grupo de inovação não vai resolver.
A única chance está na completa reinvenção do negócio ao redor de uma nova arquitetura que é, em sua natureza, digital.
A transformação digital das firmas ocorre apenas na convergência da estratégia, inovação e engenharia de sistemas.
· O viés estratégico traz a construção de um novo entendimento sobre o propósito da empresa, o que faz ela única e quais são as suas fronteiras.
· A inovação, junto ao design de experiências (XD), busca redesenhar a maneira como o valor é criado e entregue, em uma busca que envolve um espírito de experimentação e desprendimento.
· A engenharia de sistemas foca na construção de uma arquitetura empresarial modular e escalável, baseada em tecnologias digitais, que a cristaliza esta natureza econômica.
Essa é a transformação.
Fonte: https://www.linkedin.com/pulse/todos-querem-transforma%C3%A7%C3%A3o-digital-mas-o-que-est%C3%A1-sendo-balaguer